PRIMEIRA MEDITAÇÃO
- A ocorrência de falsas afirmações nos conduz naturalmente a um processo de dúvida provisória, até que possamos confirmá-las através da pesquisa e da ciência.
- Portanto, a dúvida não precisa ser radical nem abarcar a totalidade das afirmações, bastando que nos atenhamos apenas aos princípios, ou aquilo que as fundamenta.
- Ora, tudo que aprendi até agora foi através dos sentidos e como estes geralmente nos enganam, é prudente termos cautela com nossas observações.
- Não obstante, há coisas indubitáveis, como o fato de estar aqui e agora, sentado, escrevendo. Contudo, não devemos nos esquecer dos sonhos dos delirantes, que estão a todo o momento imaginando coisas irreais.
- Porém, como humano, estou, a todo momento, confundindo meus sonhos com a realidade, o que altera minha percepção do que possa ser real.
- Ora, mesmo supondo que estamos adormecidos, não podemos deixar de reconhecer que se assemelham a quadros e pinturas, criadas a partir de coisas semelhantes, porém reais, como minhas mãos, os objetos ou as cores com que são pintadas.
- No limite, mesmo duvidando da realidade de minhas mãos, há coisas que podemos considerar indubitáveis, como a corporeidade (res extensa), sua quantidade, sua duração, etc.
- Dessa forma, mesmo que tenhamos sérias dúvidas com relação à astrofísica ou a medicina, há conhecimentos na geometria e na aritmética que são indubitáveis, como a soma de três mais dois ou o quadrado que deve ter sempre quatro lados.
- Contudo, apesar de meus enganos, tenho a convicção de que a veracidade das coisas repousa em Deus, que sendo todo-poderoso, poderia permitir-se me enganar. Porém, sendo justo e bom, jamais o permitiria.
- Muitos consideram a ideia de Deus uma fábula e temos de respeitar suas opiniões, pois não há nada neste mundo que não possa ser colocado em dúvida.
- Não obstante, há muitas convicções arraigadas em meu ser que me predispõem a segui-las, e este é o caminho que devo seguir, por prudência e a indicação de que são mais verdadeiros de que minha dúvida radical.
- Mesmo supondo a existência, não de um Deus bondoso, mas de um gênio maligno constantemente a enganar-me, chego à conclusão de tal hipótese não me conduz a nenhum conhecimento verdadeiro, devendo, pois, abandoná-lo como inútil.
- Contudo, o caminho para a obtenção da verdade é árduo e espinhoso, como o escravo que descobre a liberdade, mas não sabe o que fazer com ela.
SEGUNDA MEDITAÇÃO
- Descartes se esforça para superar as dúvidas que abalaram suas certezas, mas não desiste.
- Como Arquimedes, que move o globo terrestre a partir de um único ponto, Descartes deseja encontrar também uma única coisa que seja indubitavelmente verdadeira.
- Supondo que tudo seja falso, o que então poderia ainda ser considerado verdadeiro?
- Mesmo supondo um espírito enganador, posso concluir que a constatação: eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira.
- Contudo, não sei bem o que sou, o que demanda portanto alguma cautela em fixar minha essência.
- Pensei-me ser um homem, um animal racional. No entanto, tal desdobramento se torna polêmico, ao ter de me certificar o que é animal e o que é racional. Assim, fui conduzido à ideia de corpo, como algo fundamental, por ser dotado de extensão. Contudo, acho estranho que meu corpo possa ser dotado de características especiais como mover-se, sentir ou pensar.
- Se o meu sentir e meu pensar dependem de meu corpo, só uma coisa podemos considerar como independente: a expressão eu sou, eu existo; uma coisa que pensa, fazendo de meu pensamento a verdadeira natureza de meu ser.
- Esta conclusão não depende nem da imaginação nem de um raciocínio lógico, por ser evidente por si mesmo.
- Mas o que sou, portanto? Uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Estas reações são independentes de minha capacidade de pensar.
- Apesar de nossas reações psíquicas serem mais fáceis de conhecer do que isto que as fundamenta, nosso esforço é no sentido de caracterizá-lo.
- Pois é pela distinção de suas características que as podemos conhecer com precisão.
- Não obstante, o conceito real de alguma coisa só pode ser dado por suas condições genéricas de extensão, flexibilidade e mutabilidade, que são coisas abstratas.
- Ora, tais características só podem ser obtidas através do entendimento, uma potencialidade própria do conhecimento espiritual.
- São, pois, meus julgamentos abstratos que dão consistência às coisas, pelo fato de que meus sentidos me enganam.
- Contudo, não podemos descrer que possa haver um conhecimento pelo senso comum, por intuição imediata.
- Na verdade, é o espírito que, em confronto com as coisas, toma conhecimento de sua autonomia (sou eu que penso).
- O mesmo ocorre com o conhecimento de mim mesmo, que se sente diferente de seus atos.
- O espírito é, pois, evidente por si mesmo, e sua autonomia se faz a custa de minha diferença de tudo o mais.